O sequestro da lamentação

Por Jonas Madureira

Para começar, uma banda e uma música empolgante. Em seguida, uma moça bastante simpática pega o microfone e se dirige para o povo, dizendo: “Chegou o seu dia! Você é mais que vencedor! Todas as bênçãos que você determinar vão acontecer! Onde você colocar suas mãos prosperará! Você é filho do Rei! Você é filha do Rei! Nada pode abalar vocês! Nada pode derrubá-los! Chegou a hora da conquista! Alegrem-se! É tempo de restituição!”. E depois de um solo frenético de guitarra, ouve-se apenas um grito: “Sai do chãããão!”. Então, todos de uma só vez começam a pular e num só coro cantam clichês de conquista, de vitória, de restituição e por aí vai. Nesses cultos não há tempo nem espaço para a confissão de nossas mazelas ou de nossos dilemas. Só há tempo e espaço para a afirmação de nossas aparentes virtudes e certezas. Realmente sequestramos a lamentação de nossos cultos.

E por quê? Por um motivo bastante óbvio: medo. A lamentação é aterrorizante, causa pavor. Ela desestabiliza nossos pressupostos teológicos, nos humilha, nos constrange, afinal nos obriga a dizer o que realmente estamos sentindo e pensando. A lamentação incomoda muito, machuca o ego, põe em xeque a nossa inteligência e assusta o outro, uma vez que desestabiliza também as crenças dos que ouvem o lamento. A lamentação é a exposição das vísceras que inutilmente tentamos esconder. Ela é suja, vem carregada de dúvidas, de questões perturbadoras, e, como somos demasiado assépticos, sempre tentamos nos livrar dela.

Como se não bastasse, além de ser terrível e suja, a lamentação também é bíblica. As Escrituras estão repletas de lamentações e de salmos de lamentações. A Bíblia tem um livro que se chama “Lamentações”! O que isso significa? Que não dá para matar e enterrar a lamentação de uma vez por todas. Ela sobrevive a todas as nossas artimanhas triunfalistas, assépticas e pseudoteológicas.

A lamentação é o contrário de uma oração “bonitinha”, politicamente correta. Ela é feia, melancólica, questionadora e às vezes chega a ser quase petulante. Mas não confunda lamentação com murmuração! A murmuração é uma oração vil, sempre presente na boca de um incrédulo, de um descrente. A murmuração é a afirmação de uma fé que se perdeu; por isso não passa de verborragia agressiva, apóstata e irremediavelmente revoltada contra a vontade soberana de Deus. Na murmuração, não há amor nem fé, só ressentimento, ódio de Deus, ofensa barata e comparações gratuitas (Ex 15.24; 16.3).

É bem verdade que a lamentação é uma oração feia, mas, diferente da murmuração, não é vil. Quer saber onde ela está? Procure-a apenas na boca de um crente que ama a Deus sobre todas as coisas. A lamentação jamais poderia estar na boca de alguém que perdeu a fé. Por outro lado, ela é sempre a confissão de alguém que, embora continue crendo e amando a Deus, tem um dilema que não pode mais ser escondido, nem jogado para debaixo do tapete. Lamentação, portanto, é coisa de crente e não de incrédulo; é coisa de gente piedosa, mas também de gente humana demasiadamente humana.

Jesus lamentou. No momento mais doloroso, mais humilhante e vexatório de sua vida, ele não lembrou de Deuteronômio 28, mas de um cântico de lamentação, escrito por Davi, em Salmo 22, que começa assim: “Deus meu! Deus meu! Por que me abandonaste?” (Mc 15.34). Note que nem Jesus nem Davi começam suas lamentações assim, de chofre: “Por que me abandonaste?”. Veja, antes de colocar para fora o dilema que perturba e constrange, eles dizem “Deus meu! Deus meu!”, e isso faz toda a diferença. Eles não se tornaram ateus, nem perderam a fé! As lamentações de Davi e de Jesus são totalmente construídas num contexto de amor e fé. Aquele que pergunta pelo abandono de Deus primeiro confessa que Deus é o seu Deus! Não se começa reclamando, questionando ou blasfemando. A lamentação começa com amor e adoração, com o reconhecimento da grandeza de Deus. O fato é que ela passa da adoração ao dilema, e é o dilema que a gente não suporta.

Lembro-me de uma senhora que, ao voltar da igreja para a sua casa, encontrou na sarjeta seu filho baleado da cabeça aos pés. Na época, ela me procurou aos prantos e disse coisas que me perturbaram muito. Não esqueço do momento em que ela disse com gritos e lágrimas: “Meu Deus, onde estava o Senhor? Por que meu filho morreu assim? Se pudesse te ver, Senhor, te daria um soco na cara!”. Isso era insuportável de ouvir. Confesso que fiquei constrangido, minha vontade era dizer: “Calma! Não fale isso! Não blasfeme!”, porém algo mais forte do que minha assepsia me fez apenas abraça-la. Mas ela rejeitou o meu abraço e continuou vociferando contra Deus. Fiquei assustado, sem saber o que fazer, mas não demorou muito e aquela mulher exauriu-se, perdeu as forças nas pernas e caiu de joelhos. Depois de um pequeno instante silencioso, ouvi sua oração terminar assim: “Meu Deus, me perdoa! Por que falei assim com o Senhor? Te amo mais do que tudo nessa vida! Foi o Senhor que me deu esse filho e é para o Senhor que ele voltou! Louvado seja o teu nome!”.

Deus nos deu a lamentação para nos livrar da incredulidade e do cinismo. Nenhuma pergunta, por mais constrangedora e perturbadora que seja, seria capaz de assustar ou magoar a Deus, que, como disse Agostinho, “conhece os abismos da consciência humana”. Fique tranquilo, Deus não se escandaliza com nossos dilemas. Sinceramente, não há nada que você possa dizer para ele que cause nele espanto. Agora, o nosso próximo e o próximo de nosso próximo, que somos nós mesmos, não suportam a confissão do dilema. Por quê? Medo. Medo de blasfemar, medo de perder a fé, medo de parecer com um incrédulo, medo de não ser compreendido, medo, medo, medo…

Afinal, de onde vem tanto medo? Certamente não vem de Deus. O Deus da cruz não sequestrou a lamentação. Pelo contrário, foi ele quem nos deu a lamentação. Mas o que fizemos com ela? Sequestramos, e o pior de tudo é que não estamos interessados em seu resgate. Não queremos sua liberdade. Na verdade, se pudéssemos mataríamos e enterraríamos nossos lamentos de uma vez por todas. Mas isso é impossível. Um lamento nunca morre. Sua existência está intimamente ligada às razões do coração, e nenhum homem ou mulher, anjo ou demônio, por mais poderosos que sejam, podem destruir o coração e suas razões. É verdade, sequestramos a lamentação. Não ouvimos mais o seu canto nem o seu tom melancólico em nossa liturgia, mas ela ainda está aqui, bem viva dentro de nós, em nossos dilemas. Até quando, meu Deus, manteremos nosso lamento aprisionado no cativeiro de nossos medos?

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