O que é o Evangelho do Reino? - Parte 2

Luciano Motta

Até que ponto a Igreja de hoje tem anunciado a esperança do Reino vindouro que já teve início em Cristo? Que tipo de “evangelho” vem sendo pregado nas reuniões, na mídia, nas conversas, no testemunho diário? Será que a proclamação do evangelho aos perdidos continua centrada em Cristo e em Seu Reino? Ou “alguns ajustes” estão sendo permitidos na mensagem para se atender às demandas contemporâneas, mesmo negligenciando o que de fato corresponde ao Evangelho do Reino?

Antes de considerarmos essas questões, vale destacar que a Bíblia menciona muito mais a palavra “Reino” (basileia) do que a palavra “Igreja” (ekklesia). Um exemplo: tendo como referência o livro de Mateus, a expressão “Reino dos céus” aparece 64 vezes e somente duas vezes a palavra “Igreja”. A ênfase de Deus parece ser bastante diferente do que se ouve ultimamente nos cultos e nos programas gospel de TV e rádio.

Tem sido muito comum um tipo de evangelho centrado nas riquezas materiais, no conforto. São pregações que enfatizam diariamente o que cada crente deve receber de Deus: bênçãos, bens, posses, empregos melhores, salários maiores. São músicas que transmitem uma mensagem voltada para o homem e suas carências emocionais, totalmente conformada a concupiscências (anseios, desejos intensos) que a Bíblia condena veementemente:

Não ameis o mundo nem as coisas que há no mundo. Se alguém amar o mundo, o amor do Pai não está nele; porque tudo que há no mundo, a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida, não procede do Pai, mas procede do mundo. Ora, o mundo passa, bem como a sua concupiscência; aquele, porém, que faz a vontade de Deus permanece eternamente (1 João 2.15-17).

Repare que esse texto expõe o que move o mundo: a concupiscência da carne (comer, beber, vestir), a concupiscência dos olhos (desejar ver e ser visto) e a soberba da vida (bens, dinheiro). Em si mesmos, não são anseios maus. O problema é que esses desejos não procedem do Pai, mas do mundo. São passageiros. Serão abalados quando o Reino de Deus se estabelecer em definitivo na terra. Só aquele que faz a vontade de Deus permanecerá, aquele que hoje vive em função dos valores do Reino eterno.

John Piper, em uma série de palavras intitulada Aos Pregadores da Prosperidade, lança uma questão: Por que alguém “iria querer anunciar um evangelho que encoraja o desejo de ser rico, confirmando deste modo as pessoas em seu desajuste ao Reino de Deus?” Afinal, Jesus foi categórico: “Como é difícil para quem tem riquezas entrar no Reino de Deus! [...] É mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus” (Marcos 10.23,25). Essa palavra se alinha à exortação do apóstolo Paulo: “Mas os que querem ficar ricos caem em tentação, em armadilhas e em muitos desejos loucos e nocivos, que afundam os homens na ruína e na desgraça. Porque o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males; e por causa dessa cobiça alguns se desviaram da fé e se torturaram com muitas dores” (1 Timóteo 6.9-10). Por que alguém pregaria algo que pode levar pessoas à ruína, à perdição, ao desvio da fé, a uma vida de tormentos?

É verdade que as bênçãos de Deus seguirão aqueles que ouvirem a Sua voz (Deuteronômio 28.2). Sim, é verdade que se semearmos muito, colheremos muito (2 Coríntios 9.6), e que nos foi prometida uma medida recalcada, sacudida e transbordante como fruto do nosso dar (Lucas 6.38). Tudo isso é bíblico, mas apenas parte da boa notícia, não sua principal ênfase! O evangelho de facilidades e conquistas materiais, que conduz multidões a amarem o dinheiro, não as levará a perseverarem até o fim em dias de tão intensas dores. Isso não é o Evangelho do Reino! Jesus disse: "Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou odiará a um e amará o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e às riquezas" (Mateus 6.24).

Outro tipo de mensagem se posiciona em extremos. É muito ruim estar com pessoas cheias de legalismo e religiosidade, que nunca conheceram Deus como aquele pai que preparou um grande banquete para receber seu filho pródigo, perdido, ingrato, em retorno para casa, arrependido (Lucas 15.11-24). Imagine congregações inteiras tomadas desse espírito legalista, igrejas desprovidas de graça e compaixão, orgulhosas de sua tão extraordinária espiritualidade!

Tanta gente foi ferida nos últimos anos com o peso desproporcional da correção e, por consequência, da condenação e da rejeição de irmãos e líderes por causa de tropeços na caminhada, que hoje repelem tudo o que for associado à Igreja. Alguns ainda guardam no coração um sincero temor a Deus, ainda reconhecem que Jesus é o caminho, a verdade e a vida, mas não conseguem mais se aproximar dos crentes, tampouco do dia a dia eclesiástico.

Na outra ponta, e talvez devido a esse tipo farisaico de "evangelho", dissemina-se em toda parte uma mensagem que engrandece a graça e o amor de Deus e minimiza Sua Retidão. Muitos se lançam em uma vida de total "liberdade” a ponto de subverterem valores legítimos do Reino, como a santificação. Paulo disse aos filipenses: "...desenvolvei a vossa salvação com temor e tremor; porque Deus é quem efetua em vós tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa vontade. Fazei tudo sem murmurações nem contendas, para que vos torneis irrepreensíveis e sinceros, filhos de Deus inculpáveis no meio de uma geração pervertida e corrupta, na qual resplandeceis como luzeiros no mundo" (Filipenses 2.12-15).

Como a igreja pode ser irrepreensível em um mundo de injustiças e corrupção, se pessoas que se dizem cristãs ainda "dão um jeitinho" em seus negócios e não abandonam suas práticas, afinal, Deus irá perdoá-las? Como ser luz em um mundo subjugado pelo império das trevas, se há concessões para uma vida sexualmente ativa fora do casamento ou permissividade para o divórcio, porque Deus é amor e Ele quer a nossa felicidade?

Quem anuncia um “evangelho” dissociado de morrer para si mesmo, de tomar a cruz e seguir a Jesus, não entendeu a graça de Deus. Paulo reforça isso: “Permaneceremos no pecado, para que seja a graça mais abundante? De modo nenhum! Como viveremos ainda no pecado, nós os que para ele morremos?” (Romanos 6.1-2). Aos gálatas, o apóstolo foi igualmente enfático: “Porque vós, irmãos, fostes chamados à liberdade; porém não useis da liberdade para dar ocasião à carne; sede, antes, servos uns dos outros, pelo amor. Porque toda a lei se cumpre em um só preceito, a saber: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. [...] andai no Espírito e jamais satisfareis à concupiscência da carne. Porque a carne milita contra o Espírito, e o Espírito, contra a carne, porque são opostos entre si; para que não façais o que, porventura, seja do vosso querer” (Gálatas 5.13-14,16-17).

Outros extremos são notados: enquanto algumas igrejas se agarram com unhas e dentes às suas tradições e costumes, outras abraçam modismos e novidades para se manterem conectadas e atualizadas com o mundo ou simplesmente para não perderem seus membros para outros arraiais mais "contextualizados". Como resultado, encontramos congregações paradas no tempo e no espaço, irrelevantes culturalmente, ou igrejas que pouco se diferenciam de casas de show, conhecidas mais por suas luzes e entretenimento do que por sua capacidade de salgar o mundo (Mateus 5.13). Esses extremos não correspondem ao Evangelho do Reino!

Há ainda os que defendem a restauração de todas as coisas na terra antes da segunda vinda de Cristo. Os mais radicais nesse pensamento são, como afirma John Stott, os cristãos do "já" ou "os otimistas radiantes", aqueles que "parecem acreditar que a perfeição já pode ser alcançada aqui, agora". São como os crentes de Corinto a quem Paulo escreveu: “Já estais satisfeitos! Já estais ricos! Sem nós, já chegastes a reinar!” (1 Coríntios 4.8). Por causa da obra na cruz,
acham que não aspirar à perfeição agora é uma humilhação para Jesus. Seu otimismo, porém, pode facilmente virar arrogância e acabar em desilusão. Além de ignorar o "ainda não" do Novo Testamento, eles esquecem que a perfeição aguarda a parusia (STOTT, John. Disponível em http://www.comoviveremos.com/reino-de-deus-o-ja-e-o-ainda-nao-stott).
Não questionamos como verdade absoluta a suficiência do sacrifício de Cristo na cruz para perdão dos nossos pecados e cura das nossas enfermidades (Isaías 53). Não ignoramos a ação real e evidente do Espírito Santo hoje, por meio dos dons e da intervenção miraculosa em circunstâncias adversas (1 Coríntios 12-14). Na verdade, é assim que deve ser - a Igreja resplandecendo boas obras e glorificando o Pai (Mateus 5.16). Mas seria possível a vitória completa dos cristãos sem Cristo estar vivendo conosco pessoalmente? Em outras palavras: seria possível o pleno estabelecimento do Reino sem o Rei?

Antes da segunda vinda, haverá “bolsões” do Reino de Deus em toda a terra: famílias e igrejas, comunidades e cidades inteiras experimentando o “já” – uma antecipação da obra perfeita que Cristo irá executar assim que rasgar os céus e vir em glória, afinal, Ele virá para uma Igreja gloriosa como Ele é. Mas até que Cristo venha, a realidade celestial “ainda não” será vista em toda a terra. O amor de muitos, ou de quase todos, esfriará; outros abandonarão a fé (Mateus 24.10-12). Isso significa que famílias e igrejas sucumbirão às dores dos últimos dias. Junto das promessas aos que vencerem, ou seja, aos que perseverarem até o fim, as sete igrejas em Apocalipse 2 e 3 receberam também advertências severas, dentre as quais o abandono do primeiro amor (Ap 2.4) e a tolerância a outros espíritos (Ap 2.20). Problemas que apenas confirmam a instabilidade dos últimos dias, não uma redenção total da terra como a mentalidade triunfalista costuma enfatizar em sua mensagem.

Por tudo isso, parece inegável que grande parte do Cristianismo atual esteja falhando gravemente ao anunciar outros tipos de "evangelho", lançando fundamentos estranhos às Escrituras e apoiando-se em extremos tão nocivos aos perdidos e aos próprios cristãos. É urgente que se levantem aqueles que proclamarão os valores eternos e inabaláveis do Evangelho de Cristo. É imprescindível ao mundo de hoje uma igreja que priorize as boas novas do Reino que já é e que ainda está por vir em plenitude. Sim, são boas notícias! O Rei vem! Ele está às portas para destituir o império das trevas e trazer tempos de refrigério e restauração.

(Sobre isso, falaremos na próxima parte.)

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